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Quando a identidade rui

Eu já tinha escrito antes sobre certas inflexões e contradições existentes na nossa militância no Piauí. Mas resumindo, a ausência de uma assistência nacional e a falta de uma política de formação de quadros eficaz fez com que a UJC-PI buscasse resolver seus problemas com as próprias mãos. Com isso, colhemos tantos os frutos dos acertos quanto, principalmente e majoritariamente, dos erros. Aprender com os erros geram inflexões na práxis. Mas, sem a política de formação concretizada, ainda existiam diferentes tipos de práxis na organização cuja atuação parecia concreta apenas na confiança cega de que a pessoa colega camarada seguiria o famoso centralismo democrático. Todes praticavam o centralismo democrático, mas tal qual a centopeia, que sempre caminhou normalmente, começa a tropeçar quando perguntada de como conseguia caminhar com tantos pés, ninguém sabia de fato o que aquela palavra significava. Consigo identificar, em minha opinião, duas alas de interpretação sobre o que era c

Quando a natureza se submete ao método

A motivação para escrever este texto me veio após uma - longa - conversa com meu camarada engenheiro químico. A discussão se desenvolveu após meu comentário: "Nunca saberemos o real comportamento da natureza"; e daí vocês já imaginam o que sucedeu. Mas essa conversa serviu para mudar uns pontos de vista que tinha a respeito da Física e seus métodos. Mas antes da discussão, darei uma base à você que lê.

***


"Mãe, me empresta um elástico?"

    Minha formação em Física, creio eu, desde os primeiros períodos fui ensinado que a matemática é uma Linguagem. Uma ferramenta de comunicação com a natureza. Ela tem seus substantivos e seus verbos; e com ela, conseguimos não só determinar, mas prever dado comportamento natural. O comportamento da natureza é, de fato, quantificável. Mas para isso, precisa-se de "modelos".
    Modelos são os meios as quais quantificamos esses comportamentos. Estes não são dados para nós do nada; são criados por nós. Por que "Força" é determinada pela multiplicação da "massa" pela "aceleração"? Por que não poderia ser "massa" pela "velocidade"?
    A princípio, modelos são criados observando o comportamento anterior e posterior de dado evento. Medindo - literalmente - e anotando os dados do "experimento". Exige uma composição de "postulados", "leis", "princípios", a fim de descrever o evento.
    A um exemplo clássico, vamos tentar construir um. Considere um elástico comum, você observa que quanto "mais você estica", "maior o esforço físico" você tem que fazer.
    Com isso, você pode gritar sem medo para seus amigos:

Neste elástico, quanto mais eu estico, mais esforço físico eu sinto nos meus braços!

    Não satisfeito, você pegou vários elásticos diferentes e viu que sempre acontece a mesma coisa. Quanto mais você estica, mais esforço físico você faz! Óbvio que você não vai fazer isso com todos os elásticos do mundo; mas você testou isso em tantos que se sente confiante o suficiente para assumir e dizer que:

Em todo elástico existente, o esforço físico para esticá-lo, é tão maior quanto maior for o esticamento!

    Você ainda afirma que "Esforço Físico" ($E_\text{físico}$) é diretamente proporcional ao "esticamento". Como um bom conhecedor da matemática, você transforma seu grito na seguinte proporção:

$$ \text{E}_\text{físico}\text{ } \alpha \text{ } \text{esticamento}$$

    Podemos trocar o símbolo de proporcionalidade por uma igualdade adicionando um termo que relaciona "o quanto algo aumenta" comparado a outro (fizemos já uma análise parecida aqui), uma constante $k$:

$$ \text{E}_\text{físico} = k \cdot \text{esticamento}$$

    Assim, você dá seu terceiro grito:

O Esforço Físico necessário para esticar um elástico, é diretamente proporcional ao esticamento, e obedece a seguinte equação: $E_\text{físico} = k\cdot\text{esticamento}$

    Ou seja, se $k = 2$, o Esforço Físico necessário para esticar 1 unidade de comprimento [u.c.] será 2 unidades de esforço físico [u.E.] (lembre que não definimos aqui unidades de comprimento nem de esforço, então escreveremos por extenso mesmo!). Se $k = 3$, o Esforço Físico necessário para esticar 1 u.c. será 3 u.E.
    Quando você estava esticando elásticos diferentes, deve ter notado que ao pegar um elástico mais "grosso", rígido, notou que, ao esticar, você fez mais esforço físico que o anterior "mais fino". Por que isso acontece? Qual princípio?
    Você pode comparar ao esticar dois elásticos, com um deles mais "grosso", e, se usar uma régua, conseguir fazer os "esticamentos" iguais, e anotar numa tabela o que percebeu, terá:

Elástico Esticamento Constante Esforço Físico
Mais Fino 1 centímetro $k_1$ Fiz esforço comum
Mais Grosso 1 centímetro $k_2$ Fiz mais esforço

    Bom, você assumiu que seu modelo $E_\text{físico} = k\cdot\text{esticamento}$ vale para todo elástico do mundo! Se o Esforço Físico que você fez no elástico Mais Fino ($E_1$) for menor que no elástico Mais Grosso ($E_2$) e você fez questão de manter o mesmo esticamento - se seu modelo estiver certo - a única coisa que faz $E_1$ ser menor que $E_2$ é o valor da constante:

$$ k_2 > k_1 $$

    Você observa o evento. Se $k_2$, que é associado ao elástico "mais grosso", é maior que $k_1$, que é associado ao elástico "mais fino", você percebe que a constante $k$ é associada a um elástico, e que cada um possui um valor de $k$ diferente. De mesmo modo, percebeu que quanto "mais grosso" for o elástico, maior seu valor de $k$, e consequentemente, maior o Esforço Físico necessário para esticá-lo. Já que foi você que modulou esse evento, nada mais justo que você dê um nome à essa constante. Pode colocar seu sobrenome e chamar de "Constante de Silva" ou  "Constante Maranhão"; se me permite uma sugestão, se é uma constante associado à elásticos, que tal deixar o ego de lado dessa vez e chamar de "Constante Elástica"?

***

    Bom, você acabou de fazer um modelo para o evento de elásticos. Você observou, percebeu e se questionou; após, no seu primeiro grito, exaltou algo no evento que você percebeu (quanto maior esticamento, maior esforço físico que sentiu), um princípio; no segundo grito, depois de repetir o evento várias vezes, você assumiu pomposamente que essa observação vale para todo elástico existente, foi tão pretencioso que mesmo sem testar todos os elástico do mundo, postulou que aquilo acontecia; já no seu terceiro grito, você praticamente ditou que tal evento obedece estritamente à uma equação, e obedece tão estritamente, que parece uma lei.
    Existem modelos que exigem mais princípios, mais postulados e mais leis, que chegam a virar uma teoria. Tal qual a Mecânica de Newton! Newton (praticamente) seguiu os mesmos passos que você seguiu anteriormente. Mas ele, nada debochado, fez uma Teoria Geral da Mecânica, ou seja, de todo movimento mecânico existente. Tudo isso é um desenvolvimento e acúmulo de vários pesquisadores com o tempo. Mantendo aquilo que "funciona" (bate com o experimento) e superando o que "não funciona" com novos princípios, postulados, leis, etc.
    

***

"Meu deus! Caiu ali oh"

    Acontece que faltou algo quando construímos aquele modelo do elástico. Me desculpe se conduzi vocês nisso mas... foi necessário. Você notou algo... "extrapolado"... na construção do modelo anterior?
    Talvez quando lhe pedi para induzir que TODO elástico DO MUNDO seguisse o seu "grito". Isso é uma "visão de mundo". Que advém de quem constrói o modelo.
    Bom, não sei se você foi influenciado por mim na condução da leitura. Talvez você concordasse comigo que de fato todos os elásticos se comportam daquela maneira, mas dissesse: "Não! Só porque você testou ali uns dez elásticos não significa que TODOS são assim! Na verdade, isso já é conhecido e, por dedução, seus elásticos deveriam obedecer a essas características empíricas. Aí sim poderia formular a lei". Ou você ainda poderia discordar dizendo: "Tá, pode ser que seus elásticos se comportem desse jeito aí descrito. Mas você por acaso levou em consideração que cada pessoa vai sentir um esforço físico diferente?"
    Enfim, o que eu quero dizer é que existem diferentes maneiras de "ver o mundo", de interpretar a natureza, para explicar um evento natural. E eu acho que posso começar de uma maneira bem simples. Que tal observar algo cair?
     Considere três pessoas num parque, cada um ali com uma visão de mundo diferente. No meio da conversa eles observam uma maçã cair da árvore e depois de um breve silêncio a pergunta: "Oxe?".

  • A primeira pessoa explica o que ela acha que aconteceu. Ela crê que tudo abaixo da Terra é composto da combinação de 4 elementos fundamentais: terra, água, fogo e ar. Uma pedra maciça por exemplo, tem 70% terra e 30% água; enquanto que uma pedra porosa tem 60% fogo e 40% terra. Cada elemento, na sua forma mais pura, pertence a uma "camada" que é seu espaço natural, onde ele naturalmente está. O elemento Terra ocupa o nível mais abaixo, seguido pelo Água, que é seguido pelo Fogo, e, por último, seguido pelo Ar. Ainda, as coisas se movimentam para ocuparem o seu espaço natural. Assim, uma pedra maciça, se eu seguro a uma altura, cai pois ela contém majoritariamente Terra, e cai para seu espaço natural, o chão! A pedra porosa também cai para o chão, pois contém majoritariamente Fogo, que ocupa o nível mais baixo que o Ar (que permeia o mundo); mas, em um rio, a pedra porosa boia pois o Fogo ocupa um nível mais alto que a Água, enquanto que a pedra maciça afunda. Foi isso que aconteceu com a maçã! Talvez ela tenha muita Água e Terra na sua composição. Claro que nem sempre funciona, né? A primeira pessoa acha que tudo que é terrestre (abaixo da lua) é corruptível, diferente da perfeição divina dos corpos celestes... Enfim, ela explica: as coisas na Terra se movimentam naturalmente para ocupar o seu lugar natural.

  • A segunda pessoa discorda. Ela crê que o que acontece nos corpos celestes acontecem na Terra também. Que lá não tem nada de especial. O que acontece aqui, acontece lá da mesma forma. Ela acha que os eventos são frutos de uma causa e consequência. Diferente da primeira pessoa, ela acha que as coisas não são constituídas de combinações de elementos, mas de uma coisa só, que ela chamou de massa. Essa massa, componente das coisas, tem uma propriedade intrínseca de se atrair, e, é mais forte quão maior for a quantidade de massa das coisas. Assim, o planeta Terra era uma grande bola maciça, de grande massa, e, assim, atraia para si outras massas, como a maçã. Inclusive, há como associar uma "direção e sentido" a esse movimento observando a simetria da situação. Por fim, ela explica: existe essa causa - a atração das massas - que cria a consequência da maçã cair.

  • A terceira pessoa já discorda de seus colegas. "Não, eu também não concordo com essa sua visão de que aqui é corruptível, concordo mais com minha colega que as coisas acontecem aqui do mesmo jeito que acontecem na Lua. Mas essa sua explicação de causa e consequência também não me faz sentido. Quer dizer que se eu conhecer a causa antes, eu consigo prever sempre a consequência?". Essa terceira pessoa achava que nem tudo era tão... determinístico assim. Também discordava essa "direção e sentido" das coisas. Ela afirma que a natureza se equilibra quando minimiza sua energia. E energia não tem direção e sentido! A maçã caiu porque existe uma energia potencial que depende da altura; ela associa o nível do mar como sendo o zero, mas poderia ser lugar, afirma. A maçã cai, diminuindo sua energia potencial, mas aumentando sua velocidade, sua energia cinética. Ela tende a se movimentar para o lugar que minimize suas energias. Claro que isso não é uma característica da maçã, mas sim de campos, que é motivo para outra conversa.
    Bom, a coisa que você tem certeza é que a maçã caiu. Mas estas três pessoas explicaram como acreditam que ela caiu. O evento não mudou, a explicação sim, e, claro, há de ter uma explicação normalizada para que as outras pessoas curiosas trabalhem em cima (ou questionem). Há como dizer que alguma delas está errada? Eu acho que depende de quando lhe deram essas explicações e do quão se conhecia empiricamente os eventos da natureza.
    Se eu não conhecesse algumas "quebras de previsões" do movimento perfeitamente circular dos planetas (tornando-os corruptíveis também), a explicação da primeira pessoa era perfeita pra mim. Mas, se eu vivesse ali na época da peste negra, mais ou menos, essa explicação não era... suficiente. Ainda, se eu vivesse ali no pós segunda revolução industrial, conhecendo sobre o que é calor e afins... ficaria com a explicação da terceira pessoa. Mas isso sou eu, né?. Seria anacrônico e um completo desrespeito a História da Ciência, eu, vivendo hoje no século XXI, afirmar que algumas delas estão erradas!
    Sei que seria um encontro em tanto ver Aristóteles, Newton e Hamilton sentados juntos em um parque.

"Se serve, funciona e descreve"

    Eu sei que pode parecer óbvio para alguns já letrados no método "materialista dialético" na construção da ciência natural; mas meus conhecimentos em cima do tema ainda são rasos, então me perdoem. Mas até então, eu não me importava em como eram feitos estes modelos.
    Modelos são feitos pelos pesquisadores. Estes não são nem um pouco isentos dessas... "visões de mundo", para continuar o termo que venho usando (mas os mais letrados em filosofia sabem o que quero dizer). E, querendo ou não, isto não passa despercebido quando este pesquisador formula um modelo.
    A física até então era bem... determinista. Se você souber a equação de movimento de um carro no movimento uniforme por exemplo ($x = x_0 + vt$), você consegue determinar a posição deste durante toda sua jornada, até no infinito. Mas aí é um carro só. A medida em que se aumenta a "complexidade" do sistema, ou número de eventos, partículas, "coisas", como preferir chamar, fica difícil descrever o "sistema"; e mais ainda se estas "coisas" interagem entre si (carros se batendo, por exemplo). Com o aumento do número destas coisas fica cada vez mais difícil determinar com precisão e explicar o evento (passou de três corpos boa parte da mecânica clássica já não explica mais). Então, deixando o determinismo de lado, a física agora trabalha nesses sistema gigantes com "probabilidades".
    Durante minha disciplina de Mecânica Quântica, quando vi aqueles postulados que relacionavam Álgebra Linear abstrata com algo físico - como que "os valores de uma grandeza, ao medidos, só podem ser os autovalores do operador matemático que representa a grandeza" - e simplesmente não entendia de onde ele tirava isso. Ao perguntar pro meu professor, sempre tinha como resposta: "Porque o experimento resulta nisso, e o modelo funciona com o experimento".
    Era a mesma resposta que recebia ao perguntar para outros professores de outras disciplinas. Por exemplo, em meu livro de Mecânica Clássica, ele afirma que a força de resistência do ar é proporcional ao quadrado da velocidade. "Por que? Ora, porque isso facilita as contas na hora de responder a EDO. E o experimento demonstra". Acabei acatando a resposta.
    Pra mim, depois que me encontrei como físico experimental, é o experimento que dita se tal modelo teórico "é verdade" (leia-se, descreve bem, com boa precisão, o evento) ou "mentira" (leia-se, não é físico). Acredito que leitores deste blog já devem ter se deparado com um modelo que não consegue explicar alguns eventos físicos.
    Então, se tal modelo existente corrobora com enorme precisão com os dados coletados do experimento, ele funciona, não importa como ele foi feito. Se hoje temos várias tecnologias, com aplicações físicas, no mundo material, que usam como base tal modelo, ele explica o comportamento! 

***

    Minha discussão com meu camarada começou após ele brincar que nós físicos acreditamos em "mentiras", tais como "ondas de partículas" e "quarta dimensão". Não preciso dizer que isso é lançar um fósforo na gasolina.
    Argumentei que primeiro nunca iríamos saber o real comportamento da natureza. Isso porque toda medida tem erro. As vezes a régua de um fabricante é mal calibrada, as vezes é a gente que comente uns deslizes. O máximo que a gente pode fazer é diminuir esses erros o quanto puder; mas ainda não será exato a descrição completa de um comportamento. Mas, podemos diminuir esses erros á uma margem "aceitável" e dizer que aquilo descreve sim o comportamento natural (até a página 3).

[Em momentos parafrasearei a discussão. Talvez apareça coisas muito específicas da Mecânica Quântica e de outros temas que requerem uma certa familiaridade com o assunto e sua descrição matemática; peço perdão]

    Depois, ainda disse: "Você pode duvidar do modelo quântico da Mecânica, mas foi graças à ele que temos celulares, satélites, ele explica a estabilidade da matéria, entre outras coisas. Admito que ele não é perfeito em ontologia. Ele deixa aberto a interpretações que creio que são errôneas e fogem da materialidade. A exemplo, discordo que nossa percepção, nossa interação, mude o sistema, que quando estamos olhando está em algum estado e quando virados ele aparece em outro; ou que duas partículas passam por buracos diferentes ao mesmo tempo; ou que tem uma pequena onda literalmente dentro da partícula; ou que cada estado que representa o mesmo evento descreve estes eventos em diferentes universos paralelos. Mas querendo ou não, mesmo com suas limitações, ele descreve e funciona bastante com os experimentos feitos".
    O camarada retrucou: "Eu sei que existem erros nas medidas e concordo com você que permitamos dizer que dado comportamento é $X$ com uma margem razoavelmente pequena de erro. Mas veja, camarada, vocês estão se apoiando impondo que a natureza se dobre ao método"
    "Como assim?", perguntei e continuei: "A modulação da quântica surgiu justamente de um experimento que a física clássica não conseguia explicar. Começou com o problema da radiação do corpo negro e logo depois no experimento da Fenda Dupla com canhões de elétrons. Eles observaram o comportamento, modularam as equações, fizeram postulados e leis, tudo isso observando a natureza antes"
    O camarada respondeu: "Sim, camarada, tudo bem. Mas me diga então, o que é o spin?". Aí, começamos:

- É o momento angular do elétron.
- E ele gira?
- Não.
- Por que? Se é momento angular?
- Porque existe um princípio de que nada pode superar a velocidade da luz.
- E como que existe momento angular em algo que não gira?
- Ah, camarada, é que sem isso, nos autoveto-
- Não!

O camarada me interrompeu. "Me explique sem usar álgebra"

- Bom, não tem uma explicação empírica, dizemos que ele tem um momento angular 'intrínseco' .
- Tá vendo?
- Vendo o que?
- Vocês não conseguem explicar este evento somente por um princípio. 'A conta' (em tom de deboche) mostrou que os 'autovalores' são estes dois estados de vocês.
- Mas camarada, a análise dimensional está correta. O spin tem dimensões de momento angular! E isso é mostrado num experimento. Se colocares dois ímãs frente a frente com polos opostos entre si, e no meio deles lançares elétrons em linha reta, eles vão sofrer desvios na trajetória, uns vão pra cima, atraídos por um dos polos do ímã superior, outros vão para baixo, atraídos pelo polo do ímã inferior!
- E o que que ímã tem a ver com momento angular?
- Oxe!, camarada, o momento magnético $\mu_0$ está explícito na equação do momento angu-
- AH! Entendi! 'Na equação'... 

Me interrompeu de novo, talvez para deixar claro que eu estava recaindo no mesmo erro. Respondi:

- Ah!, camarada, você sabe que isso nem é quântico, e sim clássico, que qualquer movimento de cargas elétricas em movimento vai gerar um momento magnético induzido...
- Sim, eu sei, mas as elétrons em volta de um núcleo literalmente giram. E o teu momento 'intrínseco' que não gira como que ele gera momento angular e momento magnético?
- Quem explica é o modelo, camarada.
- Sim, o mesmo modelo que diz que os resultados de uma grandeza são os autovalores de um operador!
- Mas funciona, camarada! Você é engenheiro químico, sabe mais do que ninguém que a quântica com estes spins que explicou os motivos para os níveis de energia da molécula de hidrogênio, e ainda, foi o graças a ela que vocês tem o melhor modelo para explicar as ligações moleculares. É justamente por causa da combinação linear das funções de onda que determinam a redistribuição eletrônica completa e o surgimento dos orbitais ligantes e antiligantes!
- Passou do $H_2$ a quântica não explica mais nada também né? *risadas*. Mas veja, camarada, tudo bem que eu brinco com você porque gosto de te ver com raiva. Mas escute o que você está dizendo. 'É por causa da combinação linear'? Pra quem reclamava tanto da falta de materialidade de algumas interpretações da função de onda você está sendo quase hipócrita. Você está explicando um princípio natural por meio de equações.
- Mas camarada, sempre foi assim, não?
- Não! Dias atrás você me explicou o que era o 'ímpetus' da mecânica aristotélica; o que era 'força viva' na discussão sobre energia cinética; e várias outras vezes em que você chegava animado com alguma descoberta nova na história da física que você vinha animado me falar e não usava uma equação sequer pra descrever. Parece que quando se trata de Quântica, e até mesmo da Relatividade, você recai sobre as equações. São as equações que explicam o comportamento.
- Mas não é literalmente as equações que determinam o comportamento?
- É. Mas eu creio que quando elas estão desamparadas de uma explicação empírica, elas são só equações.
- ...
- Convencido?
- Não. Não consigo entender em você afirmar que o modelo não tem materialidade se existem não só experimentos, como tecnologias criadas a partir dele.
- Ora, camarada, por acaso balas de canhão foram feitas só depois da mecânica de Newton? Mandamos a Laika pro espaço com relatividade? Tecnologias são feitas com base no modelo normal. Quando Newton criou a sua mecânica, derrubando o ímpetus, as balas de canhão continuaram. Quando Lagrange e Hamilton criaram suas mecânicas os pêndulos continuaram. Admita que a Quântica falta em explicar de forma empírica e que isso não é o real comportamento da natureza!

    Ele realmente me fez pensar, mas... eu não estava totalmente convencido (e pra ser sincero, ainda nem estou). Mas me falta/va argumentos. A Quântica realmente faltava de explicações empíricas para seus eventos; mas na minha cabeça isso era algo... pacífico. Depois de pensar um tempo, continuei:

- Mas camarada, comparar a falta de empirismo da Quântica com a descrição da mecânica macroscópica é meio... injusto. Quando não tínhamos aprofundamento no micro, isto é, quando não conseguíamos enxergar as miudezas, associávamos tudo aos nossos sentidos! Associamos luz a algo que conseguíamos ver e criamos a ótica; associamos o som à nossa audição e criamos a acústica; o nosso tato de sentir quente ou frio foi estopim pros princípios da termologia; e a junção de todos se deu no movimento dos fenômenos, criando a mecânica. Acontece que tanto a Quântica quanto a Relatividade está relacionada com fenômenos que não conseguimos sentir. Até que conseguimos ver o antes e depois, mas o durante é complicado; e os modelos existentes explicam os resultados que obtemos nos experimentos.
- Certo, camarada. Há uns dias atrás você me disse que não acredita em teoria das cordas. Por que?
- Vai mudar de assunto?
- Só me responda.
- Porque acho que só porque a conta deles fecha, não quer dizer que a realidade é daquele jeito. Pelo amor! 10 dimensões espaciais!?
- Esquece as contas. Por que que você não acredita que a natureza se comporta por essa teoria?
- Por que a explicação empírica deles impõe uma explicação completamente antimaterialista. 'Ah... a vibração de cordas criam matéria'. Já tem um século e ninguém nunca achou essas tais cordas.
- Hm! Entendi. E por que uma partícula que não gira tem um momento angular 'intrínseco' na realidade?
- Eita, mas vai voltar de novo pro spin...
- Claro! Agora me aponte a quarta dimensão, camarada!
De novo, em puro deboche
- Não consigo apontar... ela é temporal...
- Ahhhhh!, não consegue..., entendi!
- Cara, simplesmente impossível discutir contigo.
- Relaxa, camarada. Tô te zoando. A Teoria Quântica já virou um paradigma e, com isso, trabalhamos em cima desse momento normal. Não estou dizendo que ela é inútil ou que não tem seus méritos. Mas não vou ficar calado quando escuto você dizendo que ela descreve o comportamento da natureza.
- Mas camarada, o modelo funciona com os experimentos, isso por si só não basta?
- Não! E a teoria das cordas não cai nisso?
- Não! Os experimentos não batem!
- Hm...
- ...
- Tudo bem, camarada. Não vou te estressar mais. Só me responde uma última coisa. O que é de fato a função de onda?
- *Suspiro*. É um ente puramente matemático, que não tem sentido físico nenhum, mas que contém toda informação da partícula. Ela possui sentido físico apenas quando a elevamos ao quadrado - isso quando ela não é uma função imaginária - e integramos num dado volume. O resultado disso gera a distribuição de probabilidade da partícula. A partícula não é mais localizada, e sim distribuída em um dado volume, formando uma nuvem de probabilidades, que você, inclusive, chama de orbital, ou em alguns casos de eletrosfera
- E de onde vem que o quadrado da função de onda é a densidade de probabilidade?
- Do postulado.
- *risadas* É isso, camarada. Você não consegue me explicar o fenômeno sem usar da matemática. E tá tudo bem. Não é culpa sua, não vá procurar respostas onde não tem. A Quântica foi feita assim mesmo. Mas, acredito que do mesmo jeito que você discorda da Teoria das Cordas, estes motivos são suficientes para você desconfiar da Teoria Quântica. Pelo menos como ela é hoje. Vai que você não contribui pra essas mentiradas *mais risadas*.
- ...

Aqui eu já tinha me chateado.

- Camarada, do mesmo jeito que "não é só porque as contas fecham que seja verdade", é o "não é só porque o modelo funciona que seja verdade". Um modelo que descreve a realidade, com o mínimo de erro possível, precisa ter sua ontologia firme. Sem espaços para 'colapsos de funções' ou 'expansões no vazio'. A Mecânica Quântica e a Relatividade ainda tem muito de trabalhar em sua ontologia. Você se lembra do que me falou sobre ontologia e método de pesquisa?
- Que a Física tem abandonado o materialismo dialético natural e se metamorfoseou num amalgamo de métodos.
- Pois é. Agora que cumpri meu objetivo de te estressar o bastante, o que eu quero dizer em síntese é: 'vocês tem submetido a natureza ao método, quando, na verdade, é o método que deve ser submetido à natureza'.

***

    Essa frase ecoa na minha cabeça até hoje. Eu ainda discordo de meu camarada a respeito da falta de materialidade da Mecânica Quântica. Ainda não fui convencido quando vejo, literalmente, resultados experimentais que derivam diretamente desta teoria. Mas não posso deixar de concordar com essa frase. Ela se aplica perfeitamente à Quântica. Não consigo explicar comportamento $X$ da quântica sem lançar mão ao modelo, quando deveria lançar mão da própria natureza.
    Se você me perguntar: "Por que em uma molécula diatômica o nível de energia se divide em dois", eu vou conseguir lhe responder - e inclusive consigo lhe mostrar a conta - por meio de autovalores das matrizes hamiltonianas; por meio do modelo; mas pela natureza...
    Por isso digo que, apesar de não me convencer, o camarada levou essa.

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